Hoje, naquele aleatório de imagens, o Google me enviou uma, de seis anos atrás. Era a primeira visita que eu fazia à minha irmã, que estava internada na tentativa de reparar o erro que ocorreu após a bariátrica.
Naquele dia, ela ainda era a mesma Selma com que convivi por quase 4 décadas. Abriu um sorriso ao nos ver, ficou feliz com as flores e depois soou um tanto mal humorada ao contar que não tinha data pra uma nova cirurgia acontecer.
Porém, a ideia de morte, coma e todas essas merdas que viriam na sequência sequer passavam pela nossa cabeça. Tanto pra ela quanto pra gente, nada era sério. E como cantava o Bono, naquela canção bonita que eu costumava mandar pra ela, nas madrugadas de pânico quando ela me ligava chorando, "é só um momento, e isto também vai passar".
Mas passou da única forma que eu não estava pronto.
Passou como uma foice afiada em pescoço de bebê.
Passou como uma linha de pipa cheia de cerol no olho do motociclista.
Passou com uma porrada nos dentes, após destroça-los na calçada como fosse uma queda do quarto ou quinto andar.
A ironia de tudo isso é que a minha memória, tão cheia de datas, nomes e causos, ainda insiste em não recordar o que ficou daqueles meses. O que restou de todos aqueles dias que nos levou ao inferno e acabou, a seu modo, nos deixando definitivamente por lá.
Na última vez em que estive com ela, o medo era menor que a expectativa de vê-la bem novamente. E naquelas coincidências que a gente sequer explica, a visita só aconteceu porque um amigo, o Phillip Long, teimou que devíamos ir a BH ver o Roger Waters ao vivo. Eu viajaria três dias depois, e a cirurgia, estava marcada pra semana seguinte.
Por fim, o Phill optou por não ir ao show, e retornou para Araras. No caminho, Ângelo perguntou se eu queria vê-la. Era domingo, o horário de visitação terminaria às 17, mas estávamos cerca de 20 minutos atrasados. Ele desceu, conversou na recepção e me deixaram subir.
Ela ficou surpresa com a minha chegada, estava um tanto fraca mas esboçou um riso que eu segurei para não chorar. Me perguntou que show era, mostrei uma canção que ela talvez iria conhecer, ao que ela respondeu: essa é bonita. E eu disse que ligaria para ela quando tocasse ao vivo.
Antes de me despedir, pedi para tirar uma foto dela. Ela topou sem reclamar, mesmo após vários anos se escondendo de qualquer clique, por se sentir gorda e feia. Eu parti.
No show, a música tocou enquanto Ângelo buscava algo para comermos. Liguei para que ela ouvisse um trecho comigo ao telefone, mandei um beijo e desejei sorte.
Nos dias seguintes, foram três notícias sobre ela que chegaram até mim, durante a viagem. A primeira, dizendo sobre complicações durante a cirurgia.
A segunda, que o médico havia pedido que meus pais levassem os filhos para vê-la, o mais rápido possível.
A terceira, eu nem lembro o que ouvi.
Era um fim de tarde e, quando vi que era minha mãe quem ligava, pedi que Ângelo atendesse e comecei a chorar. Eu sabia o que havia acontecido.
Para o velório, me pediram para escolher uma canção. Eu não tive dúvida de qual deveria ser.
Mas ao reouvir os versos "Será que você trocou um papel de figurante na guerra por um papel principal numa cela?" com minha irmã sendo colocada dentro de uma caixa fria de madeira, embaixo da terra, nunca mais consegui ouvi-la inteira, sem desabar.
No próximo mês, Roger Waters está de volta a BH. E eu irei revê-lo. Sem saber se é pra reabrir uma gaveta de memórias e conseguir deixá-la ao menos suportável ou se é para exorcizar de vez todos esses demônios que adormecem ao meu lado, há quase cinco anos.
Seja por um motivo ou pelo outro, aqui dentro, uma coisa nunca morreu. Como eu gostaria que você ainda estivesse aqui, Teté.
“Nós somos apenas duas almas perdidas
Nadando em um aquário ano após ano
Correndo sobre o mesmo velho chão
O que nós descobrimos?
Os mesmos velhos medos
Queria que você estivesse aqui.”