E quando chegar a nossa vez, a gente vai dar conta?
Até duas semanas atrás, o meu tio mais divertido e astuto ainda estava por aí, prometendo que viria me visitar pra gente ouvir Fagner em vinil e tomar uma cachacinha antes do almoço com a desculpa de abrir o apetite. E se vou falar dele no passado, não é porque ele partiu, mas sim porque chegou a hora dele enfrentar a doença mais filha da puta de todas e que já fez três pódios anteriores na família, numa disputa entre ela e meu avô e outros dois irmãos dele.
Mas se o velho espírito atleticano o ensinou a acreditar e torcer contra o vento, dessa vez a partida me pareceu injusta, comprada, sem graça, no horário e data inadequados, com um público pífio, ingressos caros e sequer nos permitiu acompanhá-la no velho radinho a pilha.
De um lado, a gente espera notícias como quem quer ao menos o empate. E todo o tempo, sai um gol, outro, mais um e mais um que até o narrador já não se empolga mais ao contá-los.
E sim, a gente sabe que tudo só acaba quando o juiz apita.
Só que como a gente teve de montar o time com desfalques - e convocar até quem disputava outro jogo ao mesmo tempo, fica difícil ter uma equipe coesa. Mesmo com tanto craque em campo.
Minha mãe estava indecisa se tinha se recuperado bem da última derrota para dizer que aceitou a convocação. Contudo, fez o que a memória afetiva e seu super poder infinito sempre fizeram. Deixou a dor e as lesões que ainda carrega consigo de lado e adentrou aquela merda de campo alagado debaixo de chuva.
E brigou com uma irmã que quis remeter todo o mérito do jogo ao treinador favorito dela, enquanto pra gente, ficava apenas a chance de acompanhar a partida do banco.
Outro tio usou uma tática que nem a gente sabia que ele possuía. Para isso, trocou aquele ar sóbrio e o silêncio contumaz por uma análise detalhada do esquema tático.
Minha tia - a mesma que sempre me recebeu a vida toda com sorrisos, um livro da Sabrina nas mãos e um convite para comer a melhor macarronada do mundo - não teve tempo nem para compreender qual seria sua posição no jogo. Está em campo quando a chamam, quando não chamam, quando precisam, quando não precisam e, se em outro momento isso seria motivo para aplauso, desta vez só indica que ela também não sabe o que fazer.
E me doeu ouvi-la confessar: eu tenho de ser forte. Se eu desmorono, todos vêm comigo.
Ok, fica menos triste e pesado contar o que a gente tem atravessado assim, como o esporte que o meu tio mais amava e que até rendeu a ele um de seus apelidos: Maradona. Mas se eu tentar escrever de outra forma, vou me perder nas palavras ao contar que neste sábado, pela primeira vez desde que começou, a partida fez uma pequena pausa.
E nela, eu me reuni com meus primos e primas e, enquanto a gente aguardava para comer e abria cervejas, vinhos e lembranças, nós tivemos 6, 7, 8 ou 9 anos novamente.
Nós dividimos pratos, copos, canções e medos que, se hoje são mais duros e feios do que quando a gente dividia os mesmos joysticks, só são possíveis porque ainda somos nós.
Ainda.
Em algum momento do dia, meu primo me perguntou sobre quando fosse a nossa vez, se a gente daria conta. E para deixar mais difícil a minha resposta, ele me contava sobre um velho amigo do meu tio - o Rosa - que desde o primeiro momento se colocou pronto para o que fosse preciso.
Não sei, acho que respondi que daríamos conta sim. Só que agora, tentando registrar aquele sábado sem que ele nos leve para o mais escuro dos dias, eu não tenho certeza de nada. Porque isso aconteceu antes. Vai acontecer depois. E depois e depois e depois até que a gente não esteja mais aqui e caberá a outros segurar o fio da vida na ponta de uma bolha de sabão.
É triste sim pensar que a gente ainda vai endurecer tanto que, ao invés de se questionar se damos conta, é possível que habitemos menos tempo no inevitável porque o hoje vai parecer que acontece cada vez mais rápido. E a gente não pode deixá-lo passar.
Assim como o tio fez quando, após uma distância física de anos, chegou sem avisar ao meu casamento e antes que eu dissesse qualquer coisa, abriu o vidro do carro e me falou: “eu tinha de estar aqui para comemorar a sua felicidade. Então eu vim.”
Mas se a gente vai ter de aprender da pior forma como as flores perdem a força quando a ventania vem mais forte, talvez seja o momento de deixarmos de coisa e cuidarmos da vida.
E quando chegar a nossa vez, lembrar que não precisamos dar conta sozinho porque outros de nós também estarão por lá.
"E quando chegar a nossa vez, lembrar que não precisamos dar conta sozinho porque outros de nós também estarão por lá." com ênfase nisso aqui, amigo. ❤️