O casamento gay, a criança com down e o preconceito travestido de proteção
Entre tantas idiotices que povoam o Instagram, vez ou outra chega pra mim algo que realmente me toca. Mas na última vez, esse toque foi um tanto incômodo.
Era um vídeo da Pepita contando sobre o que escutou de uma pessoa que ela tentou contratar para cuidar do seu filho e o motivo da negativa foi “minha família nunca me deixaria trabalhar na casa de um homem que quer ser mãe”.
O vídeo em questão está logo abaixo.
A primeira escolha do nosso pajem
Assistiu? Pois é. Tem várias camadas ali mas o que mexeu comigo é porque consegui sentir o que ela deve ter sentido. Tanto que, depois de 7 anos, desengaveto uma memória morta só pra me certificar que fiz o certo.
E ela começa com o Ângelo, meu esposo, decidindo que o pajem do nosso casamento, que entraria com as alianças, seria o filho de um casal de amigos dele, Priscila e Leandro, de Juiz de Fora.
Fomos presencialmente lá formalizar o convite, eles pareceram felizes mas, em seguida, pontuaram uma coisa: o filho tinha um certo atraso no desenvolvimento e isso poderia impactar na data.
Pra nós, isso não era problema algum. E por isso, adiamos em quase um ano o grande dia e Ângelo ainda deixou claro pra eles:
“A gente faz questão dele. E se na nova data ainda não der, pensamos juntos numa alternativa. Ele pode, por exemplo, entrar num carrinho motorizado ou qualquer outra forma que for preciso. O importante é que seja ele.”
A razão de manter nossa escolha do pajem
Tenho que admitir que, desde o início, esse trem de casamento foi ideia do Ângelo. Claro que topei, depois até me envolvi nos detalhes mas, ele que havia começado com aquilo. Então, mais de um ano antes, quando ele disse que o filho de uma amiga que eu conhecia pouco seria o pajem, eu só concordei e pronto.
Aliás, o menino ainda iria nascer alguns dias depois.
E nasceu com síndrome de down.
Porra, vamos no óbvio primeiro: convite feito, convite aceito, que diferença isso faria?
Especial de verdade, mas por outro motivo
No dia que fomos a Juiz de Fora formalizar o convite, lembro que Ângelo e eu conversamos a respeito da condição do Antônio.
A conclusão dos dois foi que não era mais só a fofura infantil presente na nossa cerimônia.
Era uma outra forma de mostrar que amor e respeito podem (e devem) abrigar toda e qualquer diversidade; que as nuances do preconceito não o torna menor para quem o sofre.
Em resumo: Pra nós, o que fazia o Antônio ser especial em nosso casamento não era o fato deste maldito eufemismo ser usado para noemar pessoas com síndrome de down.
Ele era especial porque nos permitia compreender que, de outros modos, o mesmo olhar feio, pesado e de julgamento social que a gente recebia, também era destinado a ele.
Logo, sua presença só reforçava a máxima que tentamos fazer ecoar naquele dia tão bonito pra gente: tudo que a gente precisa é de amor.
Sem pajem e sem noção
Fim de semana feliz, convite feito, aceito e casamento com data marcada.
Demos início à produção dos convites. Escolhemos criá-los a partir de vinis de singles de verdade, onde o nome dos padrinhos, cerimonialista e crianças apareceriam como se fossem músicas.
Primeira remessa pronta, a gente apaixonado com o resultado e eis que recebemos, ao mesmo tempo, uma mensagem via WhatsApp da Priscila.
Não vou publicá-la aqui, mas ela dizia num tom culposo e explicativo o seguinte:
“Antônio não poderá mais ser parte do casamento porque a avó dele não concorda com o neto sendo pajem de um casamento gay. Também tenho medo que riam dele.”
Sim, o texto todo era pra dizer essas duas coisas.
Ainda terminava com: se não se importarem, nós iremos, mas apenas como convidados.
Acabei de ler e fui procurar Ângelo já prevendo como ele estaria. Ele estava ao telefone com ela, meio monossilábico. E foi só desligar que caiu no choro. Copiosamente.
A resposta
Não lembro se chorei naquele dia, mas não esqueço o quanto me senti um lixo após ler aquela mensagem.
Só que eu sempre fui prático.
Sempre soube defender o Ângelo melhor do que me defendo.
E também sempre fui péssimo quando me dão essa opção.
Junte as três coisas e vocês têm o que respondi (também não irei transcrever aqui). Que foi algo assim:
“Não me interessa o motivo. Se você deixa outro decidir é porque concorda. Não venham porque não são mais bem-vindos. Avisa pra avó que, assim como casal gay, o neto dela irá encontrar gente pela vida que vai tratá-lo com preconceito. A diferença é que podemos omitir nossa orientação sexual caso seja preciso. Ele nunca poderá fazer o mesmo sobre ter down. Sem perceber, vocês fazem o que irão tentar evitar que o Ântonio sofra.”
Enviei, bloqueei e me senti mais leve.
Tão leve que, minutos depois, consegui pensar em outro pajem e fui revisar o nome pro convite.
Um outro pajem, uma escolha feliz
O nome do outro pajem surgiu após listar os amigos com filhos pequenos.
Mas após acontecer o que contei acima, só isso não era suficiente. Era preciso ver se os pais já eram convidados e, principalmente, se aceitariam o convite pelo único motivo que se deve aceitá-lo: nosso dia mais importante quer colocar seu filho como parte importante dele.
Então, bastou eu me orientar por isso e pronto: o Heitor era o carinho ideal pra levar as alianças. Filho de uma amiga incrível que já morou comigo, parte de uma família bem resolvida e muito querida por nós e com pais que não tinham melindres para abordar as dúvidas que ele podia ter.
Aliás, ao entregarmos o convite, ele fez uma pergunta no ouvido do pai que, em seguida, pediu que ele a fizesse pra nós: “se são dois homens casando, e na hora que falar que pode beijar a noiva?”.
Ri e respondi: Eu beijo o noivo.
Ele disse: “ah tá” e foi brincar.
Vi a felicidade no rosto dos pais pelo convite e isso se estendeu por dias, já que o Heitor se empolgou demais na prova do terno (Tô igual o 007, dizia ele) e, na sua entrada, teve escola e música do Missão impossível.
O depois e o depois
Sete anos depois, reencontramos o Heitor novamente há pouco tempo. Tá com 13 anos, se tornou um adolescente bonito, divertido e, pra nos deixar ainda mais encantados com ele, foi o churrasqueiro durante a visita que fizemos à avó dele.
Assim como a incrível família que ele tem, fica à vontade e nos deixa do mesmo modo quando estamos todos juntos.
E, certamente, essa é a razão de eu ter deixado a história do primeiro pajem pra lá ao longo desses anos. Sem saber, ao aceitarem o convite, o Heitor e os pais nos fizeram desviar os olhos da burrice e preconceito travestidos de boas intenções pra enxergar o respeito e gratidão na prática.
Aliás, se eles realmente ainda não souberem, ao lerem isso, espero que não tenham dúvidas. Heitor, Nilma, Carol, Nicole e Diogo: acho que nem sei explicar a admiração que tenho por vocês.
Pra se ter ideia, comecei esse texto porque precisava queimar de vez uma memória fria que tinha voltado . Mas foi só chegar em vocês que ela se tornou uma cinza pequena e desimportante e deu lugar a um quentinho na alma que sempre sinto quando os encontro.
Que triste pessoas queridas se revelarem preconceituosas dessa maneira....
Mas que história bonita, a do casamento de vocês! E que convite massa!!!!