Quando o natal deixou de existir na casa dos meus pais
E como a gente ainda tenta dar sentido pra data
O último Natal que comemoramos na casa dos meus pais, aconteceu em 2018.
Naquela época, ainda que fôssemos uma família pequena, estávamos todos lá. Eu, Juninho, meu pai, minha mãe, Selma. E claro, os agregados de luxo: Jaqueline (esposa do meu irmão), Ewerton (esposo da minha irmã), meus sobrinhos Gabriell e Emanuelly e minha madrinha/tia Imaculada.
A gente já era um núcleo bem enxuto, mas lembro que foi o primeiro (e último) ano em que, por exemplo, consegui comprar um presentinho para cada um, mesmo com a gente realizando um amigo oculto.
No final do ano seguinte, após um período tenebroso indo e voltando ao hospital, minha irmã faleceu, no mês anterior ao Natal. E dali, até hoje, nunca mais houve uma reunião de todos nós.
Minha sobrinha se mudou para Florianópolis.
Minha tia, após anos em que engolimos desaforos e soberbas, foi colocada para escanteio dessa parte da família.
Meu irmão se tornou pai e, como segue a regra, passou a coadjuvar na ceia da família da esposa e, antes do fim da data, passava para dar um abraço nos meus pais. E só.
O antes que nem a gente sabia que era importante
Isso não quer dizer que os natais que existiram foram perfeitos ou incríveis. Mas foram possíveis.
Por regra, a gente sabia tudo que podíamos esperar, como:
Selma fazendo questão de preparar uma sobremesa deliciosa;
Dona Maria explicando, todo ano, o porquê não teria o tradicional peru (ela nunca foi muito fã e nos convencia com o melhor argumento do mundo, que era o fato de cozinhar um pernil ou chester de modo magnífico);
Wanderley dando o “trocadinho” como presente para filhos e netos, junto com uma peça de roupa que nunca era do agrado de ninguém, seja pelo tamanho ou modelo);
Ceia saindo cedo e, pelo não hábito que sempre tivemos de não sentar à mesa, todos se serviam e ia para o sofá, de frente pra tevê.
Como disse, não era épico ou instagramável como a vida que muitos publicam neste dia. Mas era um evento nosso. E apenas isso importava.
O agora que eu ainda não sei o que fazer com ele
Em 2019, eu guardo de memória a melancolia de que não sabíamos o que fazer naquela noite. Então comemos em silêncio e fomos deitar.
Em 2020, no ano da pandemia, a ausência da minha irmã foi compartilhada com o fato de que o ideal era não abraçar. Então comemos em silêncio e fomos deitar.
Em 2021 e 2022, eu não lembro como foi.
E então, veio o Natal deste ano.
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Então é Natal. E o que você fez?
Em 2023, eu fui o único filho que estava presente.
Meu irmão, como de costume, foi cumprir o protocolo com a família da esposa.
Minha sobrinha estava de plantão, há 1286 quilômetros da casa dos meus pais.
Meu sobrinho atendeu a um pedido do pai e foi ceiar na casa do tio paterno.
Então me restou colocar um sorriso na cara, dizer para minha mãe o que queria comer (tutu, taioba, pernil e uma saladinha com repolho, cebola e bacon que ela faz) e ali sentamos, eu, ela e meu pai, para almoçar um prato especial que, anos antes, seria repartido para 10.
À noite, enquanto assistíamos juntos ao filme do Mussum, mamãe se levantou, esquentou o almoço e nos servimos novamente. Quando deu meia-noite, pausei o filme porque meu pai queria fazer uma oração.
Ele, evangélico. Mamãe, católica. Eu, ateu, agnóstico ou qualquer tipo de descrente com deuses por ter descoberto, da forma mais cruel, que eles não existem. Ou se existem, imputaram aos meus pais um castigo tão pesado que, cinco anos depois, nenhum dos dois se reergueu ainda.
Na oração, meu pai disse algo sobre “família é onde o amor está”, abençoou, mesmo de longe, os netos e filhos, embargou a voz ao citar minha irmã e por fim, dissemos amém e terminamos de ver o filme.
Por ironia, a cena estava pausada no momento em que a personagem de Neuza Borges, como mãe do protagonista, o pedia para cantar um samba para ela. Olhei para minha mãe e ela, naquele olhar cansado e acolhedor, disse que ia dormir, me beijou a testa e falou baixinho “que bom que você veio, meu preto. Eu amo você”.
Pouco tempo depois, meu sobrinho chegou e me perguntou se eu toparia dividir uma latinha de uísque com coca que ele comprou, porque achou que eu poderia gostar. Tomamos e fui pra cama. Ele foi prosear com um amigo, que o esperava na porta pra fazerem o mesmo que eu fiz com meu irmão e vizinhos por diversas vezes, quando jovem.
Sentaram na calçada e, do quarto, eu só ouvia os risos.
Sobre as pequenas grandes coisas
Sem qualquer arroubo, eu acordei no outro dia e fui passear pelas redes sociais.
Entre mesas postas, papai noel, frutas secas e comidas bonitas, a ceia de todo mundo parecia ter sido muito mais divertida que a minha.
Quando cheguei ao perfil da minha sobrinha, eu entendi o que realmente era grande nesta noite. Em um agradecimento ao namorado, a foto tinha uma pizza salgada e outra doce, junto a uma mensagem de “eu te amo”. Ou seja, pra ela, também aconteceu o que foi possível. E ponto.
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Mas daí eu me lembrei que até o dia anterior, eu tinha me envolvido com a Cruz Vermelha, onde trabalho, na entrega de 500 cestas básicas para famílias em vulnerabilidade.
Que tinha produzido um vídeo com funcionários da rodoviária de BH, postado no dia anterior ao Natal, onde pessoas lamentavam a impossibilidade de passar a noite com os seus.
Abri a geladeira e vi uma caixa de leite, um leite condensado e um iogurte sem lactose (havia sido comprado para a sobremesa, mas apenas eu tinha restrição quanto a isso).
Presenciei meu pai chegando da rua, com uma porção de mangas que colheu em algum lugar, dizendo que iria fazer um suco para mim.
Vi o Scooby, o totó dos meus pais, sacudindo o rabo para que eu o levasse para passear. Ouvi a vizinha chegar no muro e me chamar para tomar uma cervejinha e comer um pedacinho de carne. Proseei com eles por horas, como sempre fizemos há 3 décadas.
E enquanto sento para escrever esse texto e continuo digerindo o gosto meio amargo da lembrança que ficou, olho pra minha cama e vejo meus três gatos e meu esposo dormindo todos aninhados.
Abro algo próximo de um sorriso e descubro que sequer sei como terminar a frase, já que a memória que eu achava que tinha se tornado permanente, na verdade, só está aqui porque eu não fiz questão que ela fosse embora.
A vida continuou.
E sendo boa ou não, hoje também foi só mais um dia, que como repete sempre dona Maria, também passa.